Respondendo à pergunta se considero a cesariana a pedido uma opção válida e se eu realizaria uma: SIM, eu considero a opção pela cesariana como sendo legítima - e a desassistência também (mulheres que optam por ter seus filhos sozinhas, sem qualquer assistência médica).
Não sou capacitado a julgar uma mulher que pede por isso.
Mesmo assim reclamo para mim o direito de desaconselhar ambas. Se eu acredito ser aceitável que uma mulher diminua (ou aumente) os seios sem nenhuma indicação médica, porque deveria impedi-la de fazer uma cesariana? Impedir isso seria atuar no SEU desejo. Agir assim nada mais é do que tutelar a mulher.
Quanto a fazer uma cesariana a pedido, por princípio eu não faço. Encaminho a um colega, se isso for possível. Mas já fiz. E acho que ainda voltarei a fazer.
Fiz uma cesariana (a propósito - FIZ mesmo. Uso o verbo "fazer" quando se trata de cesarianas, e "assistir" quando se trata de parto) há alguns anos a uma paciente que me pediu para fazê-la, argumentando que não teria condições psicológicas para um parto normal. Eu havia atendido as suas duas cesarianas anteriores (paragem de progressão) e o seu segundo filho faleceu de uma SIDS (Sindrome de Morte Súbita do RN), evidentemente dramática, patética e inexplicável, com 6 meses de idade. Logo após esta morte traumática (ainda vou escrever um relato sobre a minha ida ao cemitério às 3 da madrugada para solicitar à mãe que soltasse seu bebé e que permitisse que fosse enterrado) ela engravidou novamente, mas nas vésperas do nascimento (que eu propus que fosse um VBAC2 - parto vaginal após cesariana) ela me pediu em pranto que fosse uma cesariana, pois que não suportaria o drama de imaginar o bebê sufocando na passagem vaginal. Eu ponderei, na época, que talvez fosse inviável tentar demovê-la desta ideia, diante do drama que havia recentemente passado. Assim, realizamos uma cesariana. Eu era o seu grande esteio, sua tábua de salvação. Eu era o referencial médico em sua vida. Eu estive ao seu lado durante o nascimento de seus filhos, e também no grande drama da morte de seu bebé. Como poderia dizer-lhe «Desculpe, não faço isso. Procure outro profissional. Não posso "sujar as mãos" fazendo tal coisa» (*). Isso até pode funcionar na teoria - abandonar uma paciente por sua dificuldade violenta em ultrapassar um trauma - mas na prática é impossível (pelo menos para um sujeito como eu).
(*)Obs: eu não estou falando em usar a frase acima como peça de retórica, para estimular a paciente a suportar mais um pouquinho. Falo de uma negativa REAL, de uma postura dura, que não abre espaço para a compreensão das dificuldades subjetivas de uma determinada mulher.
Minha trajetória relacionada com a cesariana mudou nos últimos anos, e hoje posso dizer que ela está muito mais suavizada. Há algumas semanas eu falei a uma conhecida activista da humanização que não conheço nenhum médico que defenda com tanta paixão o parto normal quanto eu (e isso não é um auto-elogio, é uma confissão), mas que isso não poderia me colocar numa posição de insensibilidade com relação à subjetividade e às dificuldades específicas de uma mulher.
Em alguns casos, uma cesariana pode ter benefícios psíquicos
O individualismo é uma das mais importantes conquistas da humanidade, já dizia o astronauta Roger, e abrir mão das conquistas do direito individual só produziu a barbárie e a desgraça. Valorizar o indivíduo, em detrimento de imposições e regras sociais, é uma conquista da civilização. Onde o individualismo foi solapado pelo Estado ocorreram os maiores genocídios e tragédias.
Um ponto fundamental na minha mudança na forma de ver as cesarianas foi uma conversa com Penny Simkin, em Seattle, a respeito do livro que ela acabara de escrever, o qual gentilmente me deu de presente.
O título da obra é «When Survivors Give Birth», que retrata a história de meninas abusadas sexualmente durante a infância e que, já na juventude, vêm a engravidar. Para muitas delas o parto representa reviverem estes traumas e abusos, que desta forma podem ser encarados como «distócia psíquica».
Neste contexto (a exemplo do trauma de minha paciente), podemos encarar uma cesariana como um possível benefício para além das questões físicas. Mesmo que a ideia de operar uma paciente plenamente apta fisicamente me cause repulsa, é importante que se extendam os conceitos de «aptidão», «higidez» e «capacidade», para que possam abarcar as questões emocionais, afetivas e sexuais.
Desta forma, a simplicidade das questões biomédicas (pressão, açúcar sanguíneo, tamanho do bebê, progressão da apresentação, etc...) ganha uma complexidade de caráter infinito ao ser acresentada da SUBJETIVIDADE inerente a um processo irreprodutível, único e pessoal. Neste contexto, uma cesariana pode, sim, aparecer como uma indicação JUSTA, mesmo que a justeza de tal proceder não possa transparecer nos valores presentes num banal CTG.
Não estou dizendo que essa forma de entender a dinâmica do nascimento, que inclui a questão da subjetividade, nos garante uma desculpa infalível para as indicações oportunistas. Entretanto, sem reconhecer as determinações de ordem afetiva, emocional e sexual estaremos reduzindo mulheres à sua biologia e/ou suas medidas corporais.
Mulheres são muito mais do que a soma total de tais valores.
A questão da cesariana é complexa demais, mas as tentativas de simplificação através de protocolos rígidos baseados em parâmetros biomédicos não vai oferecer todas as respostas de que necessitamos. Há que se avaliar DE VERDADE as questões subjetivas envolvidas em cada caso, e utilizar o conhecimento da ciência como ferramentas para um juízo adequado.
fonte: http://www.mae.iol.pt/
Não sou capacitado a julgar uma mulher que pede por isso.
Mesmo assim reclamo para mim o direito de desaconselhar ambas. Se eu acredito ser aceitável que uma mulher diminua (ou aumente) os seios sem nenhuma indicação médica, porque deveria impedi-la de fazer uma cesariana? Impedir isso seria atuar no SEU desejo. Agir assim nada mais é do que tutelar a mulher.
Quanto a fazer uma cesariana a pedido, por princípio eu não faço. Encaminho a um colega, se isso for possível. Mas já fiz. E acho que ainda voltarei a fazer.
Fiz uma cesariana (a propósito - FIZ mesmo. Uso o verbo "fazer" quando se trata de cesarianas, e "assistir" quando se trata de parto) há alguns anos a uma paciente que me pediu para fazê-la, argumentando que não teria condições psicológicas para um parto normal. Eu havia atendido as suas duas cesarianas anteriores (paragem de progressão) e o seu segundo filho faleceu de uma SIDS (Sindrome de Morte Súbita do RN), evidentemente dramática, patética e inexplicável, com 6 meses de idade. Logo após esta morte traumática (ainda vou escrever um relato sobre a minha ida ao cemitério às 3 da madrugada para solicitar à mãe que soltasse seu bebé e que permitisse que fosse enterrado) ela engravidou novamente, mas nas vésperas do nascimento (que eu propus que fosse um VBAC2 - parto vaginal após cesariana) ela me pediu em pranto que fosse uma cesariana, pois que não suportaria o drama de imaginar o bebê sufocando na passagem vaginal. Eu ponderei, na época, que talvez fosse inviável tentar demovê-la desta ideia, diante do drama que havia recentemente passado. Assim, realizamos uma cesariana. Eu era o seu grande esteio, sua tábua de salvação. Eu era o referencial médico em sua vida. Eu estive ao seu lado durante o nascimento de seus filhos, e também no grande drama da morte de seu bebé. Como poderia dizer-lhe «Desculpe, não faço isso. Procure outro profissional. Não posso "sujar as mãos" fazendo tal coisa» (*). Isso até pode funcionar na teoria - abandonar uma paciente por sua dificuldade violenta em ultrapassar um trauma - mas na prática é impossível (pelo menos para um sujeito como eu).
(*)Obs: eu não estou falando em usar a frase acima como peça de retórica, para estimular a paciente a suportar mais um pouquinho. Falo de uma negativa REAL, de uma postura dura, que não abre espaço para a compreensão das dificuldades subjetivas de uma determinada mulher.
Minha trajetória relacionada com a cesariana mudou nos últimos anos, e hoje posso dizer que ela está muito mais suavizada. Há algumas semanas eu falei a uma conhecida activista da humanização que não conheço nenhum médico que defenda com tanta paixão o parto normal quanto eu (e isso não é um auto-elogio, é uma confissão), mas que isso não poderia me colocar numa posição de insensibilidade com relação à subjetividade e às dificuldades específicas de uma mulher.
Em alguns casos, uma cesariana pode ter benefícios psíquicos
O individualismo é uma das mais importantes conquistas da humanidade, já dizia o astronauta Roger, e abrir mão das conquistas do direito individual só produziu a barbárie e a desgraça. Valorizar o indivíduo, em detrimento de imposições e regras sociais, é uma conquista da civilização. Onde o individualismo foi solapado pelo Estado ocorreram os maiores genocídios e tragédias.
Um ponto fundamental na minha mudança na forma de ver as cesarianas foi uma conversa com Penny Simkin, em Seattle, a respeito do livro que ela acabara de escrever, o qual gentilmente me deu de presente.
O título da obra é «When Survivors Give Birth», que retrata a história de meninas abusadas sexualmente durante a infância e que, já na juventude, vêm a engravidar. Para muitas delas o parto representa reviverem estes traumas e abusos, que desta forma podem ser encarados como «distócia psíquica».
Neste contexto (a exemplo do trauma de minha paciente), podemos encarar uma cesariana como um possível benefício para além das questões físicas. Mesmo que a ideia de operar uma paciente plenamente apta fisicamente me cause repulsa, é importante que se extendam os conceitos de «aptidão», «higidez» e «capacidade», para que possam abarcar as questões emocionais, afetivas e sexuais.
Desta forma, a simplicidade das questões biomédicas (pressão, açúcar sanguíneo, tamanho do bebê, progressão da apresentação, etc...) ganha uma complexidade de caráter infinito ao ser acresentada da SUBJETIVIDADE inerente a um processo irreprodutível, único e pessoal. Neste contexto, uma cesariana pode, sim, aparecer como uma indicação JUSTA, mesmo que a justeza de tal proceder não possa transparecer nos valores presentes num banal CTG.
Não estou dizendo que essa forma de entender a dinâmica do nascimento, que inclui a questão da subjetividade, nos garante uma desculpa infalível para as indicações oportunistas. Entretanto, sem reconhecer as determinações de ordem afetiva, emocional e sexual estaremos reduzindo mulheres à sua biologia e/ou suas medidas corporais.
Mulheres são muito mais do que a soma total de tais valores.
A questão da cesariana é complexa demais, mas as tentativas de simplificação através de protocolos rígidos baseados em parâmetros biomédicos não vai oferecer todas as respostas de que necessitamos. Há que se avaliar DE VERDADE as questões subjetivas envolvidas em cada caso, e utilizar o conhecimento da ciência como ferramentas para um juízo adequado.
fonte: http://www.mae.iol.pt/
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